Assusta-me e muito me atormenta sempre que a tela do computador, à minha frente, impõe-me a premente necessidade de registrar minhas lágrimas e comentar a tristeza de ter perdido mais um grande amigo. E como isto tem acontecido, no meu já tão sofrido cotidiano, nesta quase intangível e dolorosa toada… Nestes tempos, que um tonto irresponsável classificou de “gripezinha”, o vírus vai dilacerando almas e corpos, com mais de 250 mil óbitos, e legando um desvario de sofrimento e solidão aos que sobrevivem.
Valdesley é meu amigo desde antanhos dias. Chefiamos greves estudantis. Vandalizamos uma praça em rebeldia pela inútil administração de um prefeito inútil, inteiramente analfabeto, que a irresponsabilidade udenista (A UDN já foi responsável alguma vez na vida? Lembrem-se de Carlos Lacerda.) impôs na prefeitura da amada Princesa do Cariri. Eu, Valdesley, Aristides (cujo pai, o imenso e melhor clínico à época, Dr. Quixadá Felício possuía um acervo de mais de dez mil livros e os emprestava à meninada interessada em ler. Era escritor. Emprestou-me várias obras), Zé de Brito, Ozéas Duarte, Luciano Lira (ainda de menor idade quando já sonhávamos em socialismo.) e a turba de jovens garotos marcando o recado político que os adultos, confusos e covardes, negavam.
Fundamos um jornal O Nacionalista (que tinha como epígrafe: “a Petrobras é intocável”). Liamos muito, apesar de as livrarias da região serem despovoadas de farta e séria oferta literária. Havia a Livraria Católica, Ramiro Maia e mais quase nada.
Em 09 de junho de 1961, após concurso público, eu e Valdesley fomos plenamente aprovados e indicados para trabalhar na agência do Banco do Brasil de Juazeiro do Norte. Importante salientar que Valdesley logrou tirar a nota máxima: dez em português. E registro: nestes mais de 180 anos de existência do Banco do Brasil, ninguém conseguiu igualar-se ao gênio-guru de Mauriti. Único dez e mais ninguém.
Poeta de excelente conteúdo, da melhor inspiração, do melhor talento. A facilidade com que produzia sonetos (lindos, lógicos e perfeitos) chamava a atenção dos mais íntimos. Nunca os publicou, por inibição, simplicidade ou por puro desdém. Quem teve a sorte e o cuidado de colecioná-los, possui hoje uma raridade. (Nós, eu e Jurandy Timóteo).
Tão logo empossados no Banco, tomamos a iniciativa de fundar ali um jornal — Jornal Bancário.- Os objetivos que foram desenhados ao alinhamento editorial eram a defesa dos interesses da classe trabalhadora, eternamente oprimida pelos banqueiros e empresários, luta por melhores salários, direito a exercer movimentos paredistas, fortalecimento sindical entre outras reivindicações. O Jornal Bancário cunhava sua inclinação socialista quando, em cada edição, púnhamos no rodapé da última página uma frase revolucionária: “Panela sem feijão é tambor de revolução”, “Um fuzil, dois fuzis, mil fuzis= libertação do país”, “que nos traga o ano novo a revolução do povo” e por aí seguia o mesmo viés.
Na histórica noite de sexta-feira, 13 de março de 1964, (data aziaga?) Jango assinou a lei da Reforma Agrária, durante a realização do maior comício (na Central do Brasil) esquerdista da vida brasileira. O Jornal Bancário já estava impresso. Mas tínhamos que publicar a grande notícia logo manhãzinha. Acordamos o Valderiz Brasileiro (nosso editor) e madrugamos com a manchete em vertical “Jango assina Lei da Reforma Agrária”. E só. Foi tudo. E nunca mais nada.
Menos de duas semanas após, o país foi estuprado, violentado, acorrentado e silenciado em sua liberdade, no seu mais lídimo e mais autêntico direito soberano de ir e vir. Nosso sério Jornal Bancário foi empastelado. Fui preso algumas vezes e exilado. O mesmo aconteceu com Valdesley. Encontramo-nos anos depois (muitos anos mesmo) e rimos a valer da inocência e da burrice da direita fardada.
Valdesley foi casado com Mirtes Machado, pessoa de uma inteligência magnífica e rara. Dois filhos deste consórcio: os encantadores Artur e Paloma. Também de rara inteligência. Alguns anos mais tarde, divorciaram-se.
Homem de poucas mulheres, Valdesley elegeu a musa de sua existência, Socorro, jovem princesa que o acompanhou até os sobressaltos derradeiros de sua vida e fincou sua presença até os estertores da moléstia que o sucumbiu. Socorro e Valdesley, vocês guardaram no silêncio e nos segredos das alcovas, seus mais delicados e silenciosos versos. Socorro preservou a sua juventude e a graça de seus poemas. E eternizou a sua adolescência, Valdesley.
Chorei as minhas lágrimas todas. Fátima deixou meus olhos secos, esturricados como as terras do nordeste. Mas os sentimentos sempre souberam renascer, deslumbrarem-se em cada madrugada no cumprimento ao sol matutino. Sempre vivos aos desenlaces e sensíveis aos sofrimentos e machucaduras do espírito. Com as feridas se abrindo às dores e às fatalidades. Como agora, neste momento infausto, nesta agressiva e absurda certeza de sua despedida.
Acodem-me recordações lúdicas: estudávamos música com o Padre Ágio Moreira. Eu, você, Luciano, Aguiar e Edilson. Fretávamos o charmoso carro de Pedro Maia. O melhor calhambeque do Crato. Íamos até o Lameiro. Uma viagem longa para uma experiência que durava duas horas. O velho e querido Padre, com a paciência dos santos e dos anjos, no presenteava com os ensinamentos dos primeiros acordes musicais. Depois, retornávamos ao Crato, a pé, uns poucos quilômetros enviesados de caju com cachaça e a certeza de que já éramos “bons em música”.
Mais tarde, no bar Gaybu do amigo Taveira, iamos terminar as noites sob o comando do Rum Montilla e Coca-cola, enquanto discutíamos quem cantava melhor : Chico Alves, Orlando Silva ou Núbia Lafayete. Tutita, às vezes, compunha o grupo. Tempo muito bom. Pedro Patrício já enriquecia a turma, com suas piadas irreverentes.
Hoje… o hoje é setentão, cheio de cabelos brancos e sobretudo de ausências. Que nunca serão preenchidas. Lembranças. Relembranças. E agora, meu velho, meu Valdesley que esteve em tanta festa nossa, você é neste instante a grande falta, a minha saudade terrível e mais dorida. Uma dor persistente, teimosa. Hoje… você escreveria o seu melhor soneto.
Ver-nos-emos em qualquer tempo? Quisera ter certeza…
Wellington Alves-TONTON